5.14.2014

Meu duplo, Henry Miller (por Viviane Ka)

Meu duplo, Henry Miller
Por Viviane Ka

Devora, 2013 (nanquim sobre papel)

Henry Miller é tão marcante na minha vida de leitora que quando vi o desenho das mulheres de Leandro Dário, logo me lembrei da cena de Trópico de Câncer, das prostitutas contorcionistas entrando no quarto que Henry dividia com seu amigo Filmore em Clichy, Paris. E agora são três horas da madrugada e temos aqui um trio de prostitutas nuas dando saltos mortais sobre o chão. Não há em nenhum livro de Henry, personagens sem embate com o outro, seja com um amigo, seja com uma mulher. Embates mentais, embates sexuais.

Henry , na maioria de seus livros, duela intelectualmente com amigos, a voz do outro dando o sinal para a entrada da própria voz do narrador. Henry e seus amigos literários gostam de trepadas coletivas, dividem mulheres, trocam de parceiras. Dança das cadeiras.

O sexo com várias pessoas também é como um ballet, uma erupção de gemidos e movimentos a serviço de uma cena. Os corpos por cima, por baixo, encontrando um espaço e uma função qualquer, que seja apenas observar ou atuar. Em suruba só não se pode ficar ausente de sentidos.

Anais Nin em seu livro Henry e June, descreve sua vida dividida entre a paixão por Henry, a rotina com o marido Hugo, a obsessão por June (a mulher de Henry) e a atração por seu terapeuta, no caso o grande Otto Rank, que escreveu vários ensaios sobre o duplo.

Quando leio Henry, sinto-me eu e um outro eu projetado nas páginas. É a tal da vida dupla, que Anais levava. No caso dela uma vida quádrupla, quíntupla. No desenho de Leandro, um universo sensual multiplica-se num contorcionismo para dentro de si próprio, como uma malabarista de circo que consegue enfiar a cabeça entre as próprias pernas. No espelho somos duplicados, e poucos de nós têm a chance de descobrir - feito Alice - o que está do outro lado.

Sem o duplo, é impossível produzir prazer, mesmo que seja na masturbação. A masturbação relaciona-se com uma imagem, uma fantasia, uma imaginação. Não se diz que na masturbação é bom usar a mão esquerda para sentirmos que outra pessoa nos pega? Buscamos o estranhamento que o outro nos provoca. Muitas vezes sinto que Henry sou eu. Mesmos fundidos, nos esfregamos para produzir alguma faísca, um tremor, um olhar para fora do capuz que se forma entre o leitor e seu livro. Freud refere que o duplo é marcado pelo fato de que o sujeito identifica-se com outra pessoa, de tal forma que fica em dúvida sobre que é o seu eu ou substitui o seu próprio eu por um estranho. Em outras palavras, há uma duplicação, divisão e intercâmbio do eu. O duplo é um outro de si mesmo - incógnito como tal e reconhecido pela sensação de estranhamento que ele é capaz de causar.

As mulheres de Leandro olham para fora de cena com seus olhos impassíveis de inumanas siamesas. Como se todas as perversões fossem parte de um mesmo sonho, o sonho particular e coletivo de cada um. A sombra e os espaços brancos criam um texto harmônico e perturbador.

Escreve-se sobre sexo para a própria masturbação?  Nada como uma cena de sexo bem escrita, crua e poética ao mesmo tempo. Em Trópico de Câncer, Henry escreve sobre a fisiologia do amor antes de começar a putaria: a baleia com seu pênis de um metro e oitenta em repouso. O canguru tem um pênis duplo: um para os dias úteis e outro para o feriado. Em meu membro há um osso de quinze centímetro, uma ereção de chumbo com asas...

Delírios que despertam o faz de conta erótico de Anais Nin. Em seu diário, escreve que o marido tem pinto grande demais para ela. Com Henry, confessa ela, nunca conheci tamanha plenitude. É o duplo que se funde.  É o pau despertando criatividade.

Mas quando Henry olha a racha e escura das mulheres que se contorcem em seu quarto pobre, abre-se em seu cérebro uma profunda fenda: todas as imagens e lembranças que foram trabalhosamente reunidas, rotuladas, documentadas, irrompem tumultuadamente para fora, como formigas saindo de um buraco na calçada. Trópico de Câncer é foda. É um jorro, um insight atrás do outro. A compreensão do vacilante e desmoronante mundo através da buceta fudida de uma puta. Quando se apresenta um pinto ereto, a vida tem algum sentido.  É por isso que sinto que Henry é meu duplo. Pau duro e buceta molhada, dizia aquele cineasta antes de filmar qualquer cena. Sem isso, o mundo não roda.

Viviane Ka é paulistana, produtora editorial, e autora dos livros: 10 mandamentos para a felicidade sexual da mulher (editora Jaboticaba) e Triunfo dos Pelos (editora GLS). É editora da Touch Editorial, especializada em conteúdo para tablets.


Texto publicado na Revista Sexus, edição 5.